terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sobre o medo, o desconhecido, e ambos


   As superstições são as regras pelas quais um grupo humano tenta criar a ilusão da previsão em um meio ambiente incerto. As regras são efetivas no controle da ansiedade; e as inúmeras regras deixam de pesar na consciência uma vez transformadas em hábito. Mesmo quando a situação real é horrível e ameaçadora, as pessoas com o tempo se adaptam e a ignoram. Além disso, há um traço perverso na natureza humana que aprecia a crueldade e o grotesco se não lhe oferecem um perigo imediato. O povo afluía às execuções públicas e fazia pique-nique à sombra do patíbulo. A vida durante os séculos XIV a XVI oferecia uma profusão de espetáculos de sofrimento e dor. (..)
   É um erro pensar que os seres humanos sempre procuram estabilidade e ordem. Qualquer um que tenha experiência sabe que a ordem é transitória. Completamente separada dos acidentes cotidianos e do peso das forças externas, sobre as quais uma pessoa tem pouco controle, a própria vida é crescimento e deterioração: é mudança, senão não é vida. Porque a mudança ocorre e é inevitável nos tornarmos ansiosos. 
   A ansiedade nos leva a procurar segurança, ou, ao contrário, aventura - ou seja, nos tornamos curiosos. O estudo do medo, por conseguinte, não está limitado ao estudo do retraimento e entrincheiramento; pelo menos implicitamente, ele também procura compreender o crescimento, a coragem e a aventura.

"Paisagens do Medo", de Yi-Fu Tuan, p. 17-18
Imagem: Capa do livro

quarta-feira, 24 de julho de 2013

$14,99


      Meu nome é Octave e minhas roupas são da APC. Eu sou publicitário: ahn, sim, eu poluo o universo. Eu sou o cara que te vende merda. Que faz você sonhar com essas coisas que você nunca vai ter. Céu sempre azul, meninas que nunca estão feias, felicidade perfeita, retocada no Photoshop. Imagens tratadas, música ao vento. Quando, à custa das suas economias, você conseguir pagar o carro dos seus sonhos, esse que eu fotografei em minha última campanha, eu já o terei tornado ultrapassado. Eu estou três Vogues à frente, e sempre faço com que você se sinta frustrado. O Glamour é o país onde nunca se chega. Eu te drogo com a novidade, e o futuro com a novidade, de modo que ele nunca fique novo. Há sempre uma nova novidade para envelhecer a anterior. Fazer você babar: esse é o meu sacerdócio. Na minha profissão, ninguém quer a sua felicidade, porque as pessoas felizes não consomem.

      Seu sofrimento dopa o comércio. No nosso jargão, nós o batizamos de "decepção pós-compra". Você precisa urgentemente de um produto, mas uma vez que você o possui, você precisa de um outro. O hedonismo não é um humanismo: é fluxo de caixa. O seu lema? "Gasto, logo existo." Mas para criar necessidades, é preciso atiçar o ciúme, a dor, a insatisfação: essas são minhas munições. E o meu destino é você.

Trecho de 99 Francs, Frédéric Beigbeder (tradução livre)

domingo, 30 de junho de 2013

Estação Luz, 18h (ou "A fada e a gordinha")

O mesmo espaço espremido e atulhado de todos os dias, que é a visão do espaço público em São Paulo. É estreito, pseudo-ordenado, impositor. É o que há de direito àqueles que ousam tamanha afronta ao Capital. É a sobra daquilo que não é privado, e que dessarte, não é de ninguém.
O gado segue em marcha lenta rumo ao controle da catraca, que contabiliza e numera o que há de mais inumerável: o humano.
O rapaz à frente para bruscamente; com uma reverência quase cortesã, guardadas as proporções disponíveis no pequeno espaço de que dispunha, dá passagem àquela fada esguia, alta, loura, bem trajada. Sorri imperceptivelmente frente à gentileza que, crê, é o exemplo que falta a toda uma sociedade de disputa. A gordinha, logo atrás, fica a ver navios. Espera sua vez de passar logo após o galanteador varão que, ignorando-lhe a existência, segue sua marcha satisfeito pelo dever cumprido.
Um mal-estar difícil de se compreender emana desse pequeno exemplo: quão machista é o cavalheirismo? É de fato um ramo, um sinônimo ou um primo distante da gentileza? Pois eu digo que é descendente direto da mesma brutalidade que se objetivou aniquilar naquele instante.
De cavalheirismo são dignas as mulheres, todas elas, mas algumas mais que as outras. É fruto do encanto bobo pela estética pura e simples, tão passageira quanto o próprio ato. O sopro tépido de um frio sentimento de superioridade, de força maior, e ainda mais, de uma projeção social; homem que é homem faz galanteios, mas nunca pra outro macho. Coisa bem distinta de gentileza, que pressupõe a anulação temporária das prioridades particulares em favor das prioridades coletivas.
E qual a prioridade do cavalheiro? Ora, não pode ser outra senão a da falsa anulação temporária de sua superioridade frente ao sexo frágil, sem contudo fazê-lo em favor do coletivo; é antes em favor de seu próprio ego, afagado pelo sorriso agradecido da co-responsável pelo machismo nosso de cada dia: a mulher que, alheia a tudo isso, penhora seu sorriso por uma pseudo-gentileza. 
Mas não, não é culpa dela que isso seja o que de melhor tantos homens têm a lhe oferecer. Ela tem o direito de sorrir. A gordinha, talvez, tenha que esperar sua vez.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Meu balanço positivo do(s) movimento(s)


- A tarifa baixou
Sim, esse era meio óbvio. Mas tem desdobramentos. Na prática, pra quem tomava duas modalidades de condução em São Paulo (ônibus + metrô, por exemplo), a redução foi de R$0,35 por viagem (do novo valor de integração de R$5,00 para o antigo, de R$4,65). R$0,70 ao dia, uns R$15,00 ao mês, algo como 2% do atual salário mínimo.
Dispensável discorrer sobre impacto no direito fundamental de ir e vir, né?
Ainda mais bacana, isso também suscitou questionamentos mais profundos: por que esse valor? Que tal "planilha" é essa de que o Haddad fala? Que "gorduras" são essas que poderíamos "avaliar melhor"? Será que conseguiremos botar a mão no vespeiro, como propõe o Young, e chegar mais perto da raiz do problema?

- Menos Pão e Circo
Em plena Copa das Confederações, as pessoas estão falando mais de política do que de futebol. No Brasil!
Sem mais.

- O direito de se manifestar
Sim, porque há anos que não se podia juntar mais de 10 pessoas pacificamente sem que a PM interviesse com violência. Em nome da preservação do direito de ir e vir da população, claro... "nenhum país no mundo para o trânsito pra protestar", já disse hoje Merval Pereira no Jornal das Dez (pena que não achei o link ainda, mas eu vi, eu juro).
Pois nós finalmente ganhamos esse, ahn... privilégio? Já podemos tomar as ruas com a polícia ciente de que só se intervém quando se foge à "ordem" - abrindo-se aqui toda a discussão do que isso queira dizer. Qualquer tentativa de coibir um protesto pacífico sob o argumento de que está "causando transtornos" é autoritária, mas vinha sendo repetida em coro pela nossa inconformada e democrática população que só queria chegar logo em casa. Tava todo mundo conformado. Isso era "distúrbio da ordem pública" e ponto final. Se esses baderneiros trabalhassem, não teriam tempo pra essas frescuras.
Convenhamos: agora, protestar ganhou um novo sentido. Ou o velho, que em algum momento desses 20 anos de PSDB, a gente até desaprendeu...

- A ocupação dos espaços públicos
E que me perdoem os colegas de outras cidades que não veem isso com surpresa, mas para São Paulo, isso é quase uma revolução. O espaço público é visto como o polo irradiador de tudo aquilo que deve ser evitado: degradação, atraso, desrespeito, violência; o paulistano prefere seus shopping centers, condomínios fechados com tudo incluso, carro blindado; até viajando, prefere os resorts, que são mais seguros do que sair por aí, sem saber que tipo de gente vai se encontrar no caminho... vai saber, né?
Pois o espaço público em nossa metrópole não é realmente PÚBLICO. O seria se fosse de todos e para todos, mas age-se no sentido oposto, como se ele fosse de NINGUÉM. É o território neutro onde ocorre apenas o trânsito de pessoas de um local fechado ao outro; quem realmente faz uso dele são os "vagabundos", aqueles que nada de melhor têm a fazer, que não ocupam a cabeça e o tempo com algo produtivo de verdade. É por isso que é sujo e feio: se fosse meu ou de outrém, eu cuidaria, mas não é de ninguém. Pode jogar lixo, pode deixar assim mesmo. Se fosse de alguém, esse alguém cuidava. Como não é de ninguém, tá largado.
É nesse sentido que, ver 65 mil paulistanos - pra usar os números oficiais hilários da Folha - na rua, ao mesmo tempo,  percebendo-se donos daquele espaço, é um passo sem precedentes. E que eu espero que perdure. A rua não é dos carros, é das pessoas. Mas os carros são mais fortes, não dialogam, transvestem os motoristas de uma armadura que lhe extrai o que há de mais primitivo e egoísta. Pois é. Só que, enquanto a manada está na rua, o leão que se vire e vá passear em outro lugar!

- O precedente
Falta uma liderança, mas a expectativa da maioria é de que o incêndio continue se alastrando. Causas, é óbvio, não faltam. Se atingirmos a maturidade de nos concentrarmos em uma por vez, as chances estão do nosso lado. Por mais que falte foco, o protesto chama a atenção, incomoda. Envergonha as lideranças, bem no meio do seu banquete de recepção da Copa das Confederações. É a revelação bombástica no meio do baile de gala. Não interessa que ninguém tenha dito exatamente o que está fazendo ali, mas alguma paz no sono dos governantes já está titubeando. Alguém pode envenenar seu champagne a qualquer momento.
Não temos nenhuma garantia - tal como nunca tivemos, a bem dizer. O futuro já era incerto antes dos protestos, só que o adoecimento da esperança era um fato consumado. Agora, nem tanto. Até ele entrou pra pilha disforme de dúvidas que cultivamos nesses dias. Se isso será um ganho, só o tempo dirá. É preciso paciência. Estamos acostumados demais a estímulos, não a acontecimentos. Já nos cansamos o bastante para finalmente nos transformarmos?